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segunda-feira, 5 de setembro de 2011

As Memórias De Marta ( CONTO DE PORTUGUES )


As Memórias De Marta
                                           Capitulo I
 A vida era monótona para Marta. Uma monotonia aborrecida e sufocante que a tornava infeliz. A perspectiva de passar o resto da vida naquela rotina constante levava-a ao desespero. O seu marido muitas vezes a avisava: Olha que a vida de um soldado em guerra deve ser muito excitante, mas ele trocaria toda a animação pela tua monotonia sem hesitar ─ disse no seu típico tagarelar paciente. Oh, e eu tenho cara de militar? Sou uma dona de casa, uma simples e enfadonha dona de casa. ─ Proferia as palavras enquanto marchava na cozinha de um lado para o outro. Tens um papel fundamental na nossa família: cuidar do nosso filho e manutenção deste lar. Obviamente que não temos tudo o que queríamos, mas também não vivemos mal. A nossa vida é boa. Estou farta disto. Não entendes? FARTA! Quero viver, não apenas sobreviver. Quero viajar, conhecer sítios novos, viver aventuras e, porque não, passar por um pouco de perigo. A coisa mais arriscada que fiz nos últimos meses foi atravessar a estrada fora da passadeira
          Tu sabes que eu gostaria de poder levar-te a todos esses sítios que desejas, mas, infelizmente, com o meu salário não é possível… magoa-me quando falas assim. Quero agradar-te e tu sabes disso. Sei murmurou a jovem mãe, enquanto pensava no que tinha de fazer. Decidiu-se. Tinha que sair dali, não aguentava mais, atingira o limite. Saiu da cozinha em passo determinado. Pegou no casaco e na carteira e dirigiu-se para o hall de entrada. Antes de fechar a porta ainda ouviu a voz de Vítor, que dizia: Aonde vais querida? Tem calma, tudo se resolve…   
         A noite acercava-se rapidamente. Marta Sampaio caminhou sem rumo pelas ruas e ruelas da cidade fria. Conscientemente não registrava o que via, a mente estava longe, o seu foco noutro lugar. Num local de delícias, onde a relva era mais verde, o céu mais azul, os raios de sol quentes e aprazíveis e o vento apenas uma brisa refrescante. Um táxi parou à sua frente. Entrou sem hesitar. Para onde? ─ perguntou o condutor, espreitando pelo retrovisor. Leve-me à estação dos comboios. Qual? Ahn... Não interessa, qualquer ─ disse sem entoação ou sentimento. Tem a certeza? ─ questionou o homem depois de uma longa pausa. Não obteve resposta, colocou o veículo em movimento.

        
A estação de caminhos-de-ferro surgiu em primeiro plano no vidro frontal do automóvel. O edifício mal iluminado pareceu sinistro à senhora Sampaio. Não recordava algum dia ter estado em tal cais de embarque, mas não era importante, serviria aquele como outro qualquer. Novamente sozinha procurou a bilheteira. Encontrou-a no interior, agora só faltava descobrir o funcionário que lhe vendesse o respectivo bilhete. Espreitou pelo guichet, o cubículo encontrava-se vazio. Decidiu aguardar. Provavelmente só apareceria alguém minutos antes da hora de chegada prevista dos comboios. A sua atenção focou-se na figura esguia perto do cais de embarque. Vestia uma gabardine de cor clara e carregava uma pequena mala de executivo em pele. Meditou se deveria ou não interpelá-lo. O porte do homem, a pouca visibilidade ambiente e a idéia de aproximar-se do desconhecido provocavam-lhe uma fraqueza estranha nas pernas.
            Durante alguns minutos Marta meditou ao som cadenciado das rodas metálicas pisando os carris. Era como se a composição ferroviária fosse impulsionado por um coração gigante, não mecânico, mas de carne. Como era bom, pensou ela, que também as pessoas tivessem carris, linhas orientadoras para se guiarem na vida, levando-as de estação em estação, de local em local sem correrem o risco descarrilar. O que estaria Vítor a fazer naquele momento? Provavelmente aventurando-se na feitura do jantar, enquanto tentava explicar ao filho de quatro anos o porquê da ausência da mãe. Marta conhecia bem o seu marido. Arranjaria uma desculpa para justificar o seu ato. Ele acreditava que a sua saída era apenas um ato irrefletido e que voltaria a casa quando caísse em si. Porém estava enganado, há muito tempo que aquele desejo a corroia, como um agressivo carcinoma que ia ganhando forças.     Não sabia por que, mas as mais pequenas coisas e acontecimentos banais começaram a irritá-la profundamente. Era a torneira que pingava na casa de banho; a fechadura da porta de entrada do apartamento, que para abrir era necessário fazer cócegas e sacudir a chave durante desesperantes segundos; odiava as depressões no colchão onde dormia a mancha escura no teto, as unhas que teimavam em crescer, o cheiro de Vítor e o barulho que ele fazia ao mastigar, o fato de não se sentir mulher e tudo o resto, tudo. Aos poucos sufocava, precisava respirar, exigia oxigênio, necessitava de tempo para si. Encostou a cabeça à cortina que tapava a janela e deixou-se embalar.

    
BRUUM! Marta desperta com o estrondo. Escuta. Agora que estava acordada, começou a ter dúvidas se ouvira o tal barulho ou se fora um produto do seu sonho. Olhou para a janela e viu o reflexo dela própria e do interior da carruagem. A diferença de luminosidade impedia-a de ver o exterior. Novamente espreitou, desta vez com a face encostada ao vidro e com as mãos em redor, tentando assim obstruir a claridade ambiente. Lá fora apenas escuridão. Trevas. Nada. Apreensivamente encostou-se na cadeira. Sentia-se incomodada. Algo estava diferente. Percebeu o quê! Era o silêncio. O tuc-tuc característico tinha desaparecido, não havia quaisquer barulhos ou vibrações. No entanto não estavam parados, antes pelo contrário. Como o sabia? Desconhecia. A atmosfera alterara-se, o próprio ar que respirava parecia-lhe diferente. Levantou-se, decidida a tirar a situação a limpo. Percorreu o corredor e experimentou a porta de acesso à carruagem seguinte: não abria. Tentou mais algumas vezes sem sucesso. Na porta oposta obteve o mesmo resultado.
                
Capitulo II
           As memórias brotavam num jorro de imagens do antigo
          Não sabia se era do cansaço ou da acústica da casa de banho minúscula, mas aquele tom de voz parecia-lhe ser o do seu falecido progenitor. Embora tentassem focar no problema em mãos, as memórias brotavam num jorro de imagens do antigo: a primeira recordação que tinha de si própria; o sol quente e o inverno frio; os carreiros de formigas, as borboletas e os pássaros; a alegria proporcionada pelo seu primeiro animal de estimação; a primeira bicicleta, o primeiro amigo, o primeiro verdadeiro amigo; as idas e vindas da escola, a escola, o recreio; a solidão das férias; a casa, a sala, o quarto, as refeições em silêncio; a mãe submissa, as mãos fortes e ásperas do pai devido ao trabalho no campo e na fábrica metalúrgica, os avôs afetuosos que morreriam de desgosto se conhecessem a faceta incestuosa do filho. Aquela figura paternal que impunha respeito e ministrava a disciplina e que violava repetidamente a filha mais velha. Tivera sorte a Marta, a diferença de seis anos entre ela e a irmã tinha-a poupado aos abusos. Pois ele não era um pedófilo, apenas um violador que encontrara a extinção na forma de um derrame cerebral que, numa primeira fase, o transformara num demente sem capacidade para satisfazer as suas necessidades mais básicas. Mais tarde, depois de despi-lo da dignidade, a doença finalmente levou-o para a sala de espera do Juízo Final. Não fosse a morte, prematura em termos de idade, mas a muito aguardada e desejada pela família, também ela teria tido o destino da irmã. Sim, os monstros não eram desconhecidos a Marta. ─ Quem fala? ─ questionou ela, desassossegada em relação à resposta que poderia obter. ─ O Revisor. É seguro sair ─ assegurou com convicção. ─ Não saio! Um monstro peludo anda aí fora e quer matar-me.
     ─ O problema foi resolvido. Agora, a senhora, encontra-se em segurança. Porém, precisamos que saia da instalação sanitária para que a possamos auxiliar ─  replicou ele num tom de voz calmo, mas autoritário. A jovem mãe meditou durante alguns momentos encostada à porta. Conformada com a idéia,  respirou fundo e rodou o trinco. A porta rebentou na sua frente, projetando-a para trás. Bate com a cabeça em algo e abate-se. Antes de perder os sentidos e com a vista desfocada vê o animal ereto, mostrando os dentes numa espécie de esgar ou mesmo sorriso. Vai matá-la. Porém, antes que consiga chegar a ela, é projetado por um poderoso golpe que o faz soltar um ganido de dor. Estendida nos sanitários, Dolores, ainda consegue ver o seu salvador: um homem deformado, cujo corpo parece algo resultante da explosão dum necrotério. Cada membro é diferente do outro, como peças de um aberrante puzzle forçadas a encaixarem umas nas outras. A luta continuou.     Uma forte claridade vinha de fora, transpondo as janelas escuras e espelhadas. A primeira coisa que a senhora Sampaio viu quando abriu os olhos foi à cara do ser ao mesmo tempo cômica e desproporcionada.  
Escrito por: Michael David

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